Entre Aspas

“Ficção baseada em histórias verídicas expõe a vulnerabilidade das crianças na Ilha de Marajó”

A AFA BRB, na condição de entidade de caráter associativo, sente-se no dever de expressar ideias e sentimentos de interesse geral. Assim, em certas ocasiões, pretende despertar em seus associados aquele velho e salutar sentimento de reflexão! Destarte, vez por outra, divulgamos no AFA EM FOCO matérias já publicadas na mídia – aquelas pontuais, de oportunidade.

Salientando acima o que costumamos informar no rodapé desta seção, trazemos nesta edição análise sobre o filme Manas, postada no dia 15 de maio de 2025 na versão online do Caderno DIVIRTA-SE MAIS, do jornal Correio Braziliense. A análise é assinada pelo crítico de cinema Ricardo Daehn. Confira:

“No filme de estreia, a diretora Marianna Brennand impõe as credenciais de uma grande autora: com temática realista e árdua — Manas versa sobre atrozes atos de prevalecimento frente à inocência infantil —, a diretora logra denúncia incisiva sem ceder à espetacularização da violência. Marianna assina o roteiro que elucida um ciclo de vícios nos arredores da Ilha do Marajó (Pará) e que implica incesto e pedofilia; nele, trabalhou junto com Felipe Sholl, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino, Camila Agustini e Carolina Benevides. Tal qual em Funny games (de Michael Haneke) a violência é implícita, quase nunca exposta. Pai amistoso, presente e adorável para as filhas, Marcílio (o excelente ator de Brasília Rômulo Braga) é a chave para toda a problemática da protagonista Tielle (Jamilli Correa), perdida entre os conflitos internos e as traições de papéis e relações familiares. A falta de rota leva à similar trajetória de Edna Santos, a explorada protagonista de Iracema — Uma transa amazônica (1974) —. Depois de comer do ‘pirão’ levantado pela luta da lida da família; Tielle vai provar do ‘cinturão’ paterno que a leva a determinado destino sombrio de muitas crianças sexualmente abusadas no Norte do Brasil.”

“Enquanto o ciclo da natureza segue perfeito no exterior do cotidiano de Tielle e da mãe dela, Danielle (Fátima Macedo), atos repulsivos fermentam no seio da família — a excitação de Marcílio traz o auge disso, na cena da caça (brilhantemente dirigida) e na qual o clímax está no pai ofegante. ‘Tem coisa que não adianta tu querer mexer’: a frase disparada para Tielle, pela mãe, traz o lastro de uma impunidade quase assegurada, quando o cenário ao redor denota ação desmedida da religião dentro da comunidade ribeirinha, a realidade de gravidez desestruturada e o romper de inocências.”

“Para quebrar tanto desconforto, a produção acolhe músicas que quebram a seriedade, casos das popularescas Sou do Norte e a versão aportuguesada de Total eclipse of the heart (clássico com Bonnie Tyler). Quem também esbanja talento é o coadjuvante Rodrigo Garcia, no personagem do inquieto Faguinho, repleto de galanteios e de incômodo risinho. A serenidade congênita de Tielle, no decorrer da fita, cede espaço para o registro de uma infelicidade movida a grossas lágrimas e coração partido (tudo sob o talento inerente de Jamilli Correa). Diferenciar ‘posse’ de paternidade parece uma realidade coletiva pelos dramas repassados (para a elaboração do roteiro) por moradores do rio Tajapuru. Num dos momentos mais amargos do filme para o espectador, o irmãozinho menor de Tielle, argui: ‘(Tielle) Também é mulher do papai?’.”

“Como aponta a mãe, ‘imundizando a casa’ a menina tateia a formulação de uma referência ou de ‘identidade’, e, nisso, esbarra na personagem da delegada (Dira Paes, um bálsamo na tela). Conceitos atravessados de pecado e de ignorância (como demonstram as folhas grampeadas, no livro escolar de educação sexual) se encavalam na trama em que Tielle parece destinada a ser ‘rapariga’, depois de algumas ‘subidas na balsa’ (um eufemismo sinistro para o ato da criminosa exploração sexual de jovens, em embarcações). Com a habilidosa câmera de Pierre de Kerchove e a precisa montagem de Isabela Monteiro de Castro, Marianna Brennand parece exorcizar toda a sorte de desgostos (presentes na narrativa), na emblemática cena final.”


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